Mulheres e trabalho reprodutivo: um olhar discursivo para os efeitos da pandemia nas relações generificadas
Resumo
Nesta pesquisa, temos por objetivo analisar dizeres de mulheres brasileiras sobre
suas condições de vida no contexto da pandemia, refletindo sobre os efeitos da crise
sanitária em sua relação com o trabalho reprodutivo. Para isso propomos uma
articulação teórica entre a Análise de Discurso Materialista (AD) e a Teoria da
Reprodução Social (TRS). Dentre as teorias feministas, justificamos a escolha da TRS
como aporte teórico porque ela possibilita pensar o processo de generificação dos
sujeitos como um elemento central na organização da vida material, examinando
como o gênero atua nas dinâmicas de produção e reprodução no modo de produção
capitalista neoliberal. Nesse contexto, o gênero é considerado a partir do trabalho de
reprodução social, em associação com as identificações de raça e classe, articuladas
pelo conceito althusseriano de sobredeterminação. Observamos as identificações de
raça e gênero e as posições de classe como constitutivas do processo de interpelação
ideológica que produz as evidências às quais o sujeito é assujeitado, de modo que
este funcione por si mesmo (Pêcheux, 1997), autorregulando-se a favor do Estado e
reproduzindo os sentidos dominantes. Essas identificações mantêm as mulheres no
trabalho reprodutivo produzindo processos de subjetivação que atendem a ideologia
dominante que conforma nossa formação social neoliberal. Embora o trabalho
reprodutivo não se limite ao trabalho doméstico e de cuidado executado pelas
mulheres de modo não remunerado em suas casas, neste texto trabalharemos com
esse recorte em razão da materialidade que será analisada. Realizamos nosso gesto
de análise tendo como corpus um episódio de podcast lançado em 14 de abril de 2021
e uma marchinha lançada em 23 de março de 2021, a partir dos quais tecemos
reflexões acerca dos efeitos do trabalho reprodutivo no processo de subjetivação das
mulheres. A análise foi construída a partir das regularidades encontradas no material
- escritas ou inscritas -, destacando-se a recorrência de sentidos associados à
exaustão e ao cansaço. A partir disso, pudemos pensar sobre trabalho, subjetividade,
isolamento, casa. Nesse processo, o lugar enunciativo, enquanto uma dimensão das
posições-sujeito, revelou-se fundamental na produção de sentidos, evidenciando
como as relações de opressão e a exploração determinam as diferenças de sentido,
silenciando ou visibilizando as opressões e explorações que sustentam a reprodução
das relações de produção no neoliberalismo. Também identificamos possibilidades de
resistência, nas quais o mau-sujeito toma a palavra. No corpus analisado, a
resistência foi compreendida por meio do excesso, da repetição de palavras ou
estruturas. Entendemos essa repetição como o retorno do real da língua diante da
falta, da incompletude, da impossibilidade de significar os efeitos da intensificação dos
processos de opressão e exploração durante o isolamento físico. Consideramos a
pandemia como um acontecimento discursivo, pois ela causa agitação nas filiações
de sentido e nas relações de produção. Como indícios desse acontecimento,
destacamos a emergência de novas formulações - como o “novo normal” -, a
equivocidade em torno de termos como “isolamento social” e a construção de um pré construído em torno do termo “mães”.